Desigualdade racial marca o analfabetismo no Brasil, com o Nordeste liderando as estatísticas

Educadora destaca fatores históricos e estruturais que contribuem para a disparidade no índice de analfabetismo e ressalta a importância de políticas públicas e tecnologia no enfrentamento dessa realidade.
Publicado em 17/04/2024 as 09:00

Divulgação/ Unit

Num país que tem experimentado avanços sociais e econômicos notáveis, a persistência do analfabetismo revela uma realidade desigual, destacando a disparidade racial presente na sociedade brasileira. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2023, conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que o índice de analfabetismo entre a população negra ainda é o dobro do registrado entre os brancos.

Conforme observa a professora do curso de Pedagogia da Universidade Tiradentes (Unit), Márcia Machado, uma das principais razões que contribuem para a manutenção desse índice elevado são as múltiplas desigualdades econômicas e sociais. "Essas desigualdades têm raízes históricas e estruturais, afetam a todos, mas especialmente a população negra, a maioria da qual vive na pobreza em nosso país, consequência ainda visível da ausência de políticas de proteção e apoio aos negros ao longo de séculos. Além disso, as desigualdades regionais também estão relacionadas às questões econômicas e sociais", explica.

Esse problema social, enraizado em um histórico de desigualdades estruturais desde os tempos da escravidão, concentra-se principalmente no Nordeste, região com as taxas mais preocupantes do país, atingindo 11,2%, bem acima da média nacional de 5,2%. Em seguida, o Norte apresenta 6,4%, enquanto o Sul, Sudeste e Centro-Oeste registram taxas mais baixas de 2,8%, 2,9% e 3,7%, respectivamente, de acordo com a PNAD Educação 2023.

"As regiões que recebem maiores investimentos produtivos tendem a oferecer mais oportunidades de emprego, o que intensifica a busca por educação. O oposto também é verdadeiro. Embora compreendamos que a formação humana não deve depender exclusivamente do mercado de trabalho, numa economia capitalista, o crescimento produtivo impulsiona a busca por conhecimento, exigindo um mínimo de escolarização. Embora essas desigualdades tenham origens históricas, o Brasil não tem conseguido avançar significativamente na redução delas, mesmo em períodos de prosperidade econômica", exemplifica Márcia.

A correlação entre a taxa de analfabetismo e as questões socioeconômicas torna-se evidente. "Aqueles que têm recursos para proporcionar uma educação de qualidade para si próprios ou para seus filhos o farão. Já aqueles que não conseguem acessar o ensino público ou privado de qualidade terão uma educação mínima ou até mesmo inexistente. E aqui não estamos falando apenas da escola, mas também do acesso a outros espaços de aprendizagem, construção de conhecimento e cultura", destaca.

As nuances do analfabetismo

Para o IBGE, uma pessoa alfabetizada é aquela capaz de escrever um bilhete simples, no entanto, para os educadores, o processo de alfabetização vai muito além. Isso levanta a preocupação com o alto número de analfabetos funcionais no país. Atualmente, de acordo com o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), existem cinco níveis de alfabetismo, e observa-se que as pessoas entre 15 e 64 anos distribuídas nesses níveis não conseguem avançar para o nível proficiente, ou seja, não conseguem alcançar a funcionalidade alfabética para elaborar textos mais complexos.

"Esses dados são de 2018, e ainda precisamos entender como essa realidade se configura após a pandemia e todas as adaptações necessárias no ensino em 2020 e 2021, incluindo a aprovação automática na educação básica. Isso é compreensível. Esse contingente de pessoas está em todos os setores da sociedade, muitas delas ocupando empregos precários, lutando o dia todo para sobreviver. São pessoas que precisam priorizar a sobrevivência, muitas vezes desencorajadas, o que também se torna um obstáculo para acessar ou retornar à escola", ressalta a professora.

Um dado revelado pela PNAD Educação 2023 foi que, embora a análise por cor/raça das pessoas que completaram pelo menos uma etapa da educação básica tenha mostrado que 48,3% dos pretos ou pardos se encontram nessa situação, um número menor do que o das pessoas brancas, 61,8%, a proporção de pretos ou pardos que concluíram pelo menos uma etapa aumentou 10,1% desde 2016, enquanto para os brancos, o aumento foi de 6%. "Isso nos leva a pensar que, se continuarmos a manter esse percentual elevado, talvez tenhamos mais pessoas negras completando a educação básica. No entanto, é importante lembrar que não devemos negligenciar a alfabetização e o letramento, processos essenciais na escolarização das pessoas", complementa.

O papel das políticas públicas

O combate ao analfabetismo requer esforços conjuntos de governos, organizações da sociedade civil e da comunidade em geral. Políticas públicas direcionadas, investimentos em educação de qualidade e o uso estratégico da tecnologia são ferramentas essenciais para superar esse desafio. Márcia explica o que foi feito até agora para reverter essa situação ao longo das últimas duas décadas.

"O Programa Brasil Alfabetizado foi criado em 2003, durante o primeiro governo de Lula, com o objetivo de alfabetizar jovens e adultos de 15 anos ou mais que não tiveram a oportunidade de estudar na idade apropriada, sem distinção de cor. O programa funcionou até 2016, mas foi interrompido devido à situação política da época. Em 2022, o governo Bolsonaro reativou o programa, lançando um projeto piloto no estado de Alagoas, escolhido por apresentar a menor taxa de alfabetização da população de 15 anos ou mais, conforme o Censo 2010 e a PNAD Contínua. Resta acompanhar o desenvolvimento dessa nova fase do programa", conta a professora.

Além do Programa Brasil Alfabetizado (PBA), as redes de ensino têm oferecido a Educação de Jovens e Adultos (EJA), desde a alfabetização até o ensino médio, para aqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos, incluindo pessoas negras. "Como ações afirmativas, temos cotas nas universidades, sendo a Universidade de Brasília a primeira instituição a implementá-las em 2009, mas é importante entender que esse jovem que chega ao Enem já não é mais analfabeto", enumera Márcia.

Segundo a educadora, hoje existem muitas ações isoladas de organizações sem fins lucrativos, movimentos sociais e até mesmo projetos sociais promovidos por grandes empresas que atuam com a população negra no Brasil, mas seria necessário um estudo mais aprofundado sobre quais ações contribuem especificamente para erradicar o analfabetismo neste grupo. Além disso, a tecnologia pode ser uma aliada no combate ao analfabetismo, especialmente em comunidades remotas ou carentes.

"O uso da tecnologia facilita o acesso daqueles que vivem em áreas remotas e têm dificuldade para chegar às escolas, reduzindo as distâncias para o acesso ao conhecimento, mas é preciso políticas sérias que forneçam recursos materiais a esse público e que formem educadores para o uso das tecnologias. Muitas vezes, ainda é necessário ter uma infraestrutura mínima, como acesso à internet. Não adianta políticas de distribuição de equipamentos, como computadores ou notebooks, se o professor e o aluno não tiverem acesso a uma boa conexão de internet para a educação à distância", compara a professora.

Por: Laís Marques
Fonte: Asscom Unit